quarta-feira, junho 05, 2013

Vermes

Acabo de abandonar o emprego. Mais um emprego. Um emprego público, vale salientar. Os motivos são os de quase sempre na minha complicada história de médica de família e comunidade, com o acréscimo da minha ocasional intemperança, fruto de um Transtorno Afetivo Bipolar corretamente medicado, mas raramente compensado. Às vezes, parece-me que troco de emprego como quem troca de carro, mas a verdade é que gostaria de trabalhar no mesmo lugar até saber o nome e apelido de cada comunitário. Isso já aconteceu duas vezes e foi maravilhoso. Da primeira vez, tive que sair devido a politicagem. Da vez seguinte, adoeci devido às condições de trabalho e, daí por diante, prometi a mim mesma que não me envolveria mais com trabalho daquela forma. De fato, não trago mais nenhum serviço para fazer em casa, exceto alguma pesquisa de caso clínico que exija o uso do computador.

Falando em computador, eu andei pesquisando muito nos últimos dias e revisando o material que o Ministério da Saúde envia para as unidades de saúde, além de disponibilizar on line, porque o número de casos de uma parasitose grave está altíssimo na área em que atua o posto onde eu trabalhei até hoje. Assim sendo, o Ministério da Saúde determinou que toda a população deveria ser vermifugada, independente dos resultados dos exames, com algumas raras exceções, como gestantes, por exemplo. Imagine arrebanhar mil e duzentas pessoas só pela consciência da gravidade da doença! Passamos um mês avisando o dia, que precisava comer antes, que podia ter reação ao remédio mas era raro, que teriam que ficar em repouso no posto por três horas pro caso de passar mal, que convencessem os homens a vir (homem não participa muito de campanha), que diabético pode tomar o remédio, epiléptico também pode, todos os avisos possíveis.

Duas semanas antes da campanha, uma paciente teve o exame positivo para schistosoma e veio fazer o tratamento, como é a rotina. Tomou a medicação no posto e permaneceu em observação. Após duas horas, começou a ficar tonta e vomitar. Não melhorou com plasil oral (e por estar longe do hospital, não uso medicação injetável), mas Dramin aliviou o mal estar. Ao invés das habituais três horas de observação, ela permaneceu seis horas conosco e ainda demos uma carona pra casa. Foi a pior reação que já vi à medicação e eu me convenci que a campanha seria um fracasso porque todo mundo que estava no posto falaria mal do remédio. Deu uma péssima impressão.

O Governo não mandou um cartaz pra campanha, uma folha de instruções que fosse, para a equipe (daí nos basearmos no Manual de Zoonoses). Vieram o remédio específico e outro vermífugo bem popular e eficiente contra lombrigas e afins (afinal, vamos aproveitar pra matar os vermes mais populares), umas camisetas da campanha pra equipe (todas de tamanho M) e uns squeezes. Vieram umas moças, das quais só uma me foi apresentada e que pediu à prefeitura: água, copos, cadeiras e que alguém desse palestras para a população enquanto todos esperavam a pesagem (a dose do medicamento é calculada a partir do peso), tomavam o remédio e esperavam as três horas. Nós, do posto, resolvemos fazer senhas pra ordenar tudo. Ontem, avisei à recepcionista que, sendo ela a abrir o posto, distribuísse as senhas e começasse a pesagem, com a ajuda das agentes de saúde, que chegariam antes de nós, pois moram na comunidade. Sugeri à enfermeira que, devido aos efeitos colaterais da medicação (raros, mas possíveis), deveríamos ter material de primeiros socorros e pelo menos dois carros para levar à emergência porque o posto fica num sítio distante.

Acordei duas vezes hoje de madrugada, com o barulho da chuva. ‘Lá se foi a campanha’. A caminho do posto, revisei todos os efeitos colaterais da medicação com a enfermeira e a técnica de enfermagem. A lista completa só está na bula, o manual do Ministério só fala em tontura, vômitos e diarréia (os mais comuns). Depois, fui olhando a chuva que continuava a cair, certa que só apareceriam as pessoas que moram perto da unidade.

Qual o quê! A escolinha que fica ao lado estava cheia e tinha gente no posto também. Todos sem ficha e sem pesar, embora já houvesse recepcionista e agentes de saúde, além das moças que, sinceramente, eu não sei se são do programa estadual ou municipal de endemias. Só sei que não faz sentido, para mim, marcar com antecedência, uma campanha de UM dia para medicar uma população rural, na época das chuvas e da diarréia (e a medicação dá diarréia), em plena campanha de vacinação pra paralisia infantil (também agendada antecipadamente). Não faz sentido não se reunir com os profissionais da unidade e dizer o que cada um deve fazer, mas vir criticar quando a gente já está fazendo. Então, estou eu distribuindo fichas, pesando pessoas e alocando-as numa sala onde havia alguém para anotar seus nomes e dar a medicação quando chega uma moça ‘da endemia’ pra perguntar de umas listas feitas previamente pelas agentes de saúde, com o peso, etc. Eu aproveitei a ilustre presença.

- Onde está a medicação? Porque tem uma diabética que usa insulina e ela não pode ficar em jejum.
- Não pode tomar o remédio em jejum.
- Eu sei. Ela não está em jejum, mas se demorar muito, ela não vai poder esperar as três horas de observação porque vai passar mal de fome.
- Não precisa esperar três horas. É pra tomar o remédio e ir embora.

Eu insisti, ela repetiu. À nossa volta, um tumulto de gente falando, gritando. Eu com dor de cabeça, lembrando que a ação máxima da medicação é entre uma e duas horas, ou seja, a pessoa pode começar a passar mal duas horas depois. A bula fala de fraqueza, fala em convulsões, orienta a não operar máquinas nem dirigir durante 24 horas depois da ingestão do remédio. E a moça queria mandar todo mundo pra casa imediatamente. Uma pessoa me contou que, há muitos anos, tomou o remédio e não quis esperar. Teve diarréia no meio do caminho. Eu havia lido em mais de um lugar que era pra observar, fui pra treinamento da secretaria estadual que dizia o mesmo, e vem a moça, do município ou do Estado, com não sei que formação dizer que tudo que eu aprendi, vi e ouvi está errado. ‘O que é que eu estou fazendo aqui?’.

Tudo bem, eu sou bipolar e no momento não estou 100% compensada, o que faz meu humor alternar entre a irritabilidade da depressão e a ansiedade da mania, apesar de todas as medicações. Eu sei que tenho Transtorno de Ansiedade e que a presença de uma multidão piora isso. Mas passei o último mês me preparando para hoje, sem ter recebido qualquer orientação do Ministério ou das secretarias estadual ou municipal. O que eu não ia fazer era bater boca porque não foi a primeira, nem a segunda vez que esse tipo de fato acontece na minha carreira de médica de família. O que eu fiz foi dar meia-volta, recolher minhas coisas e avisar que estava indo embora.

2 comentários:

Grissom's Girl disse...

Eu vou te dar uns tapas. Mas dou pelo Skype pq não quero te expor.
Beijos!

Grissom's Girl disse...

Eu vou te dar uns tapas. Mas dou pelo Skype pq não quero te expor.
Beijos!