domingo, agosto 09, 2009

Ser paciente Psiquiátrico

09.08.09
Você tem psiquiatra? Eu tenho. A maioria dos pacientes psiquiátricos alega que toma ‘remédios pros nervos’, mas eu admito: sou uma paciente psiquiátrica. Eu acredito que, se você reconhece que é um paciente psiquiátrico e segue o tratamento, essa é uma atitude responsável consigo mesmo e com seus semelhantes. Como um monte de gente coloca a vida em minhas mãos, minha responsabilidade aumenta porque sou uma paciente psiquiátrica. Eu admito aqui, mas tenho uma boa justificativa pra não fazê-lo publicamente.

Sou médica e muitos dos meus pacientes jamais entenderiam que ser uma paciente psiquiátrica não significa ser mentalmente insana. Costumo dizer aos meus pacientes portadores de doenças psiquiátricas: ‘Você toma remédios pra não ficar doido’, numa forma de incentivá-los a não pararem os famosos remédios controlados, que impedem que o paciente seja um carro desgovernado no meio do trânsito pesado. Eu passei a falar isso depois de assistir ‘Kiss the sky’, onde o personagem de WP dá uma bronca no amigo que quer fumar ópio: ‘Está doido? Você toma remédio pra não perder o juízo!’. De fato, ambos enfrentam uma depressão de meia-idade e um deles já foi até internado por causa disso. Poucas vezes eu ri tanto em minha vida como na primeira cena do filme onde os dois estão em plena sessão de massagem e discutem os prós e contras das medicações que já usaram ou estão usando. Pareciam comigo, conversando com minha médica que, não por acaso, foi minha professora de psiquiatria.

Por causa da doença, quase não termino o curso médico. ‘Descompensei’ tantas vezes que perdi a conta. Não gosto de tomar remédios e esse foi um dos motivos de demorar tanto, acho, a encontrar o que funciona pro meu caso. Precisei de alguns anos pra entender que, assim como cada paciente com hipertensão arterial é único, o mesmo se dá com pacientes psiquiátricos. O argumento que me convenceu a usar regularmente as medicações veio de um professor de psiquiatria: ‘assim como não se trata diabetes só com conversa, não dá pra tratar a verdadeira depressão só com conversa’. É verdade. O tratamento de muitas doenças se divide entre medicações, apoio psicológico e mudanças de estilo de vida. Pra cada pessoa, um desses aspectos pesa mais. Eu fui da geração Prozac, ‘a pílula da felicidade’. Usei quase tudo que existia na época, em matéria de medicação pra depressão e reconheço: foi a indústria farmacológica, em última instância, que me manteve profissionalmente ativa. Muitas pessoas sabem que eu tomo remédios controlados e por que, mas um professor muito querido aconselhou-me, há muitos e muitos anos, a não sair dizendo a todo mundo porque as pessoas rotulam muito facilmente, embora nem sempre entendam o que estão rotulando. Atualmente, uso apenas uma medicação, mas estou fazendo terapia e encontrei a melhor válvula de escape do mundo quando comecei a escrever regularmente. Não falto às consultas médicas, mas nem sempre foi assim. Hoje, mal a tempestade ameaça, eu corro atrás de uma avaliação extra.

Minha doença já teve vários nomes - ‘depressão maior’, ‘depressão endógena’, ‘Psicose Maníaco-Depressiva’ (PMD), ‘Transtorno Obsessivo-Compulsivo’, ‘Transtorno Bipolar’. A expressão Transtorno Bipolar era a moda na minha época de estudante porque a pessoa transita entre dois pólos extremos de humor, depois foi Transtorno Obsessivo-Compulsivo, do qual não gosto porque não define como me sinto quando estou abaixo do lençol freático que está sob o fundo do poço. Sabe-se lá como vão chamar na próxima revista de Psiquiatria ou edição do Código Internacional de Doenças. O nome não muda como eu me sinto, mas é bom saber o que eu tenho. O problema em psiquiatria é que as doenças têm muitos sintomas em comum. Alguns transtornos de comportamento são tão semelhantes entre si que, por muito tempo, eu não sabia bem o que tinha, além de ‘depressão’. Sempre que eu lia algo novo em psiquiatria, achava que tinha mais um diagnóstico pra lista. Não sou hipocondríaca, mas gosto das coisas às claras. Agora posso dizer: ‘sou bipolar’, mas continuo achando que PMD descreve perfeitamente a doença.

O primeiro aviso que tem algo errado, no meu caso, são aqueles dias em que eu quero bater em todo mundo, começando por mim mesma. Ser bipolar é ter TPM o mês inteiro, pelo menos quando se está com o quadro clínico descompensado. Ninguém te entende, o mundo é horrível e você é a pior pessoa do mundo, nem sempre você chora, mas briga com as paredes e tem um monte de dores físicas e psicológicas que analgésicos não resolvem muito bem e que a maioria dos médicos não entende. Ainda tem mais isso: existe dor física. Encontraram até um nome: Fibromialgia. Tem médico que diz que ‘essas dores nem existem, são psicológicas’. Nem por isso doem menos, posso garantir. Dá vontade de dizer: ‘Claro que são psicológicas, seu idiota! Ao menos, encaminhe a pessoa pra um psicólogo, um psiquiatra, alguém que saiba lidar com a cabeça dos outros!’. Eu mesma, tive períodos com dor de cabeça tão intensa, que usei até medicações pra pacientes com câncer em último estágio. A dor sumiu com meses de terapia psicológica e desde então, estou aprendendo a me conhecer para não viver tomando a farmácia inteira e me viciando em analgésicos. Mas tudo começou a melhorar quando eu reconheci que eu era bipolar e que, até o momento, não há cura pra isso, só controle. Se não tivesse feito admitido, já poderia ter cometido um erro qualquer, que custaria a vida de alguém. E ser bipolar não ajuda em nada pra se ter uma carreira bem-sucedida.

Um perfeito exemplo de como uma doença psiquiátrica atrapalha a vida está na série de TV ‘Monk’. O brilhante investigador Andrew Monk, afastado de suas funções indefinidamente depois que perdeu a esposa e piorou de suas ‘manias’: lavar as mãos, repetir gestos indefinidamente, etc. Ele faz terapia e não consegue tomar medicações. Resolve casos que a polícia, com pessoas teoricamente ‘normais’, psiquiatricamente falando, não consegue e vai levando a vida dentro dos limites possíveis. Ele até mesmo se rendeu ao uso de medicações quando se deu conta do quão limitante era a doença, mas ficou tão estranho e desconcentrado que resolveu parar. Ficou limpando as mãos e resolvendo tudo brilhantemente. Enquanto isso, o Jack Nicholson se rendeu às medicações pra ficar com Helen Hunt em ‘Melhor é impossível’. Agora, imagine uma médica bipolar.

A única vez na vida em que a doença me foi útil foi numa prova. Na época eu estava péssima, quase não termino o período e passei graças a muita gente legal da minha turma me apoiando, meus professores de psiquiatria, o tal professor muito querido e minha família, além de alguns grandes amigos não médicos. A doença ajudou quando a única questão da prova de psiquiatria prática foi ‘Comente Depressão e o tratamento com Lítio’. Eu só não sabia a dosagem do lítio, mas escrevi um minitratado sobre a psicopatologia, etiologia e fatores relacionados às causas da depressão, citei en passant que só se dosa lítio em usuários da droga (mal sabia eu quantas dosagens eu faria) e que não se diagnostica depressão solicitando dosagem de lítio em gente com sintomas de depressão. Tirei nove. O professor que aplicou a prova deve ter se sentido ótimo porque foi ele quem deu a aula (eu mal respirei ouvindo essa aula) e sabia que eu estava descompensada. Eu nunca cheguei a dizer pra ele que foi o argumento dele que me convenceu do uso regular das medicações.

Então, se você tem transtornos de humor, se você já fez acompanhamento psiquiátrico, se já foi internado numa ala psiquiátrica, não minta pra si mesmo. Pergunte francamente ao médico qual seu diagnóstico e qual o prognóstico. O que tem de paciente por aí que usa a medicação, mas nem ele, nem a família sabem que é ele é esquizofrênico, nem se conta. Saiba se você oferece algum risco pra si mesmo ou pros outros. Não se assuste se seu problema não tiver cura. A maioria das doenças não tem cura, mas tem controle e não é contagiosa. Visite seu médico regularmente pra prevenir complicações. Pergunte em quanto tempo deve voltar, porque os médicos quase nunca dizem e, quando dizem, quase nunca o paciente escuta. Se algum sintoma diferente aparecer, também é bom falar com o médico. Acredite que vai melhorar, tenha fé no tratamento e tenha um bom conselheiro: seu médico, um familiar, um amigo, qualquer pessoa que entende a doença e que possa perceber algo de diferente no seu comportamento habitual o mais cedo possível. No meu caso, eu percebo que tem algo de errado quando fico impaciente com os pacientes.

Se for a primeira vez que você apresenta sintomas, descarte uma causa física porque pode até ser que não seja uma doença psiquiátrica, mas alguma doença que dá sintomas parecidos. E atenção com as pessoas bem-intencionadas, mas que não entendem nada do assunto. Muitas doenças psiquiátricas tão transitórias, ou podem ser curadas se o tratamento for precoce, mas existe muita resistência do paciente ou da família. Durante uma aula de psiquiatria, ouvi algo muito verdadeiro: ‘Se um paciente sem histórico psiquiátrico tem um surto, é levado pra missa, depois vira evangélico, leva uns passes num centro espírita, vai pro terreiro e por último, quando já não tem mais jeito, lembram do psiquiatra’. O professor não criticava as religiões, ele se referia à negação da existência de uma doença psiquiátrica. O mesmo vale pros conselhos que ouvi como paciente com depressão: ‘Vá dar uma volta que você melhora’, ‘Você precisa de um cachorro’, ‘Você precisa se divertir mais’. Os conselhos e a religião geralmente ajudam muito, mas a pessoa precisa de bem mais que isso.

Como médica, indico pra alguns de meus pacientes a prática da religião e leitura de textos religiosos como parte do tratamento, mas presto atenção nas respostas às preces que faço por eles. Muitas vezes, a ajuda que peço vem na forma de um remédio ou de um médico que pode ajudá-los mais do que eu; outras vezes, apenas a fé da pessoa e força de vontade resolvem o problema. Respeito quando as pessoas se recusam a tomar medicações porque acreditam que sua fé pode curá-las. Muitos esperam que um anjo venha do céu, com o milagre. Pra mim, anjos nada mais são que pessoas daqui mesmo, que se permitem ser instrumentos de Deus, A Força, ou como quer que você chame. Em mais de uma situação, convenci o paciente com ‘Honra a Deus e dá lugar ao médico, porque o médico é instrumento de Deus’ e ‘O Senhor fez sair da terra os remédios, e o homem sensato não os rejeita’. (Eclesiático 38, v.1 e v.4). Como paciente, minha fé oscila de acordo com meu humor, mas eu já entendi que isso faz parte da doença e não me preocupo mais. Me convenci que preciso tomar os remédios por melhor que eu me sinta e tenha vontade de parar. Como escovo os dentes e tomo banho todo dia, tomo meus remédios todo dia, pra continuar de bem com a vida.

Sou paciente psiquiátrica. E daí?

4 comentários:

Suzi disse...

E "continue a nadar", diria Doli.
beijos!

Grissom's Girl disse...

Obrigada por me dizer coisas que fazem bem a alma. Quase sempre vc me ajuda mais que minha terapeuta, e meus ex-psiquiatra e psicólogo. Obrigada!

Helga disse...

Eu tenho psquiatra e adorei este post. Lúcido, direto, claro e didático. Fantástico.
beijos

Odessa Valadares disse...

E enorme, não, Helga? Simplesmente o texto me veio num domingo pela manhã e eu tive que escrevê-lo! Se eu pudesse viver disso...