sábado, fevereiro 07, 2009

'O que eu sou?'

É o que o robô pergunta a Will Smith em 'I,robot'. Robin Williams refere a si mesmo como 'isto' até obter a liberdade em 'O homem bicentenário'. E eu?

Desde a saída de minha enfermeira tenho trabalhado por duas (o pré-natal das gestantes tem ainda mais papéis que o acompanhamento de hipertensos e diabéticos). Até aí, tudo bem. Já fiquei sem enfermeira antes e sobrevivi. Tirando um certo atrapalho com a burocracia, sei todo o serviço, do agente de saúde, da técnica de enfermagem, da enfermeira e o meu. Todo mesmo. Mas acrescente-se a isso um retorno ao trabalho depois de muito tempo afastada, consciente que há um limite possível de stress a que posso se submetida sem voltar às antigas condições de saúde. Some-se à rotina diária de: 'não sei a que horas e se teremos um carro para levar a equipe', 'não há medicação', inúmeras mensagens díspares dos que trabalham na Secretaria Municipal de Saúde, 'tem concurso, não tem concurso', 'os contratos estão prontos, eu já assinei o meu, ainda não chamaram você?', 'será que eu tenho emprego, será que não?'; e até hoje (ou, ontem, pois são duas e meia da madrugada) eu fui levando.

'Levando', em termos, pois disse a mais de um paciente que ando seriamente inclinada a deixar de vez a Medicina. Eu sei, anônimo leitor, você já conhece essa história. É que eu trabalho com gente decente, minha equipe é possivelmente a melhor que tive em uns 15 postos de saúde que trabalhei desde que me formei e parte do mérito é meu, sim. Talvez eles nem sejam os melhores, mas eu sei como trabalhar com cada um.

É desanimador quando seu público-alvo não entende suas boas intenções (o que não é o caso), mas é totalmente frustrante quando quem deveria ser suporte- pra orientar, supervisionar, acolher críticas - fala uma língua diferente da sua. Não, eles não falam inglês, nem francês. Eles não escrevem em espanhol e decididamente não estão interessados em aprender a linguagem dos sinais. E eu cansei.

Oh, eu falei 'supervisionar'? Quem é mesmo o supervisor disso? Com quem eu falo quando eu tenho alguma complicação? Uma secretaria de saúde que não sabia nem que eu estava de licença-médica (e eles que me enviaram pro INSS)! Que esqueceu de me incluir na folha de pagamento! Onde o 'responsável' pelos transportes determina quando chego e quando saio do meu local de trabalho!

(eu ficava das oito às dezesseis ou catorze, dependendo do dia. Agora eu chego às nove e saio às catorze, ou chego às onze, saio à uma. Fazendo as contas, estou fazendo o meu trabalho na metade do tempo e o da enfermeira também! Fazendo o trabalho de duas, recebendo por uma e na metade do tempo, logo, deveria receber por quatro, ou pelo menos por duas. Ou simplesmente receber meu salário sem ter que ir atrás.)

Desde que eu voltei, não fiz uma palestra, não tive um dia de visita domiciliar, não cadastrei um novo hipertenso nem atualizei a lista dos antigos. Não me pergunte o que meus diabéticos e hipertensos estão tomando como medicação, eu não sei mais, simplesmente porque não tenho tempo de registrar! Eu, que sei até os apelidos de quase 400 pessoas, que sei onde moram, se faziam a dieta, se sabiam ler. Já não sei mais. Não tenho tempo de registrar minhas consultas. Tive que marcar uma quantidade menor de pacientes hoje pra conseguir terminar o trabalho de segunda-feira!

Não nasci para 'tocar serviço'. Nasci para fazer a diferença, qualquer que seja a área onde eu atue. Se eu tivesse condições, estaria cancelando minha inscrição primária no Conselho Regional de Medicina o mais rápido possível. Mas eu tenho contas para pagar e, ao contrário de há alguns meses, agora eu tenho uma razão para viver. Então, eu reassisti 'Goodbye and Good Luck' (quando Sara diz adeus ao amor da vida dela, mas que tem que sair dali ou vai se destruir), que foi o que me manteve a sanidade em junho passado. E estou seguido a ordem dos episódios até chegar a 'One to go'.

Assim como Grissom, chegou a hora de partir.

Odessa Valadares: Escritora, tradutora e 'doutora' só pra pagar as contas.

Nenhum comentário: