Você também jurou “ por Apolo, o médico e Asclépio e Higéia e Panacéia e todos os deuses” ou quando se formou já lhe disseram que o famoso juramento era considerado politicamente incorreto? Não me permitiram fazer o Juramento de Hipócrates, me fizeram ler a Declaração de Genebra na minha colação de grau.
Nunca entendi muito bem qual a diferença entre o sentido de ambos. Sei que é mais lógico manter “o mais alto respeito pela vida humana, desde sua concepção” que prometer não interromper a gravidez, não impedir a concepção ou ensinar como se envenena. Mas pessoalmente acho que Hipócrates não era nada vago e gosto das coisas às claras. Embora os tempos tenham mudado, as escolhas não mudaram tanto assim.
A bem da verdade, sempre achei aquela última parte (Enquanto mantiver inviolado este juramento, que me seja concedido gozar a vida e exercer a arte, respeitado por todos os homens em todos os tempos, mas que se eu transgredir e violar este juramento, que outro seja o meu destino.) com cara de praga. Tipo, faça ou te danarás pela eternidade. Quem sabe por isso os médicos de antigamente fossem mais éticos. Com medo da maldição.
Ainda considero poética a expressão “passarei a vida e praticarei a minha arte com pureza e santidade”, embora nem sempre o tenha feito e que o arrependimento que me sobreveio a cada vez, um castigo pouco para o tamanho do mal praticado. A maior parte das vezes foi perder a paciência e elevar a voz para alguém que viera pedir minha ajuda. O fato de estar cansada quando isso aconteceu não abona a falta.
Aos meus verdadeiros mestres-e não são muitos, apesar da imensa quantidade de professores que tive- continuo respeitando-os como meus pais (talvez até mais) e disponho-me a atender qualquer pedido honesto deles. Acredite ou não, costumo rezar por eles com certa freqüência.
A mais bela das promessas é não se aproveitar da posição que se tem. Nisso, o Juramento é perfeito (Seja qual for a casa em que entre, fá-lo-ei em beneficio do enfermo e me absterei de qualquer ato voluntário de maldade e corrupção, e, ademais, de sedução de mulheres ou homens, escravos ou libertos). Cada vez que entrei na casa de um paciente em minha vida lembrei dessa frase. Todas as vezes.
Não sou cirurgiã, portanto jamais realizarei a operação da pedra, mas sei que se o autor do Juramento vivesse nestes tempos a faria sem hesitar, graças ao advento da assepsia e dos antibióticos. Também não sou ginecologista-obstetra, o que me livra do dilema de “na vagina de nenhuma mulher jamais introduzirei qualquer aparelho para impedir a concepção ou interromper a gravidez”. Pessoalmente, se eu gerasse um anencéfalo, levaria a gravidez a termo e doaria seus órgãos para alívio do sofrimento de outras crianças. Mas nunca, nunca, critiquei uma mulher que provocou um aborto. Em desespero o ser humano é capaz de tudo.
Já ofereci, sim, a opção de abortamento para uma vítima de estupro e depois fui me aconselhar com um padre. Hoje entendo que a decisão era da paciente. Naquela época, eu era estudante e não sabia que um dia prometeria não permitir “que concepções religiosas, nacionais, raciais, partidárias ou sociais” interviessem “entre meu dever e meus pacientes”. Sinceramente, espero que Deus me perdoe e entenda.
Mas a mais difícil das promessas ainda é guardar segredo. Não os grandes segredos, mas aqueles detalhes tão pequenos que você poderia comentar a outrem sem saber do mal que faz. Espero que meu bom-senso se mantenha nos anos vindouros e que uma eventual senilidade não me faça descumprir essa parte. Sim, porque é impressionante o quanto me contam de segredos não relacionados com as doenças. Costumo dizer que me acham com cara de padre pra me contarem tanta coisa só porque confiam em mim.
Hoje mesmo, depois de 48 horas de trabalho, eu ainda entrei numa cesárea de emergência e lamentei não ser duas para socorrer um recém-nascido prematuro que nascia ao mesmo tempo na sala de parto. Não, eu não sou viciada em trabalho. Eu estava exausta, com dor de cabeça e nauseada. Eu estou doente. Mas eu prometi.
A todo custo, no máximo possível. Pela minha própria honra.
Um comentário:
Sua profissão é linda, Juliane. Principalmente, quando é feita com paixão e responsabilidade.
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