terça-feira, janeiro 31, 2006

Plantão de domingo

Um rapaz deu uma facada no próprio dedo no sábado mas não veio à emergência. Uma senhora facada, atravessando o dedo indicador da mão direita que estava vermelho e inchado. Só se pode suturar uma lesão até seis horas depois do acidente, devido à contaminação. A vacina antitetânica dele estava atrasada, pra variar (homem raramente mantém as vacinas em dia e, quando estão em dia, é porque sofreu algum acidente e o obrigaram a tomar). Seguiu pra cidade vizinha, pra tomar soro antitetânico. Vai tomar antibiótico pra infecção e terá que esperar que o dedo cicatrize sozinho.
Eu deveria dizer “bem feito”, mas não é certo uma médica dizer isso, né? Dane-se, bem feito, quem mandou ficar com medo?
A auxiliar me chamou pra ver uma recém-nascida de 22 dias, internada com diarréia e vômitos, que havia perdido a veia. Nem sinal da mãe. Uma tia estava cuidando da menina, muito desidratada. Depois de muita luta, conseguimos um acesso venoso na cabeça. O peso que constava era o do nascimento. Pesei-a novamente (eles perdem 10% do peso na primeira semana de vida, sem falar na própria diarréia) e calculei a reposição de líquido.
Uma menininha de uns quatro anos cortou o dedo no arame. Ficou danada da vida porque a imobilizamos pra suturá-la. Seu comentário, muito sensato, foi : “eu quero crescer logo, aí não deixo mais fazerem isso”. Eu ri até não poder mais.
Um rapazinho de 9 anos chegou com um espinho no pé. Eu não sei que sorte é essa que tenho: sempre tem um espinho ou dois no meu plantão. Ainda bem que esse era imenso, fácil de tirar. O garoto, além de não dar um pio, fez questão de ver tudo. Deve ser um futuro colega na área.
O rapaz que assinou o termo de irresponsabilidade voltou. Dor de cabeça, vômitos, tontura: um possível TCE com hemorragia subdural. A mãe não sabia que ele havia se mandado na noite anterior, claro. Seguiu pro neurologista na cidade vizinha e ainda deu sorte. Se não houvesse especialista naquele dia, teria ido pra capital. 18 anos e irresponsável.
A recém-nascida voltou a urinar (excelente sinal) mas ainda estava desidratada. Pelo menos não havia mais vomitado. Pedi à tia que oferecesse água com frequência.
Uma senhora com dor ao urinar foi à farmácia e comprou uma medicação que aliviou a dor, mas ela continuava urinando com frequência e alaranjado. Por que as pessoas vão à farmácia e não vão ao médico, ainda mais numa emergência tão tranqüila, é coisa que vou morrer sem entender. Expliquei que era uma infecção urinária. Ela sabia, já tivera uma há alguns anos (PQP, então por que não procurou o médico?). Prescrevi um antibiótico decente, muito líquido e sucos com vitamina C. Dá vontade de bater nesse povo, juro que dá.
Uma das amigdalites do dia anterior voltou. Eu havia explicado pra moça que no começo não dá pra saber se vai haver pus, então é melhor esperar uns dias, tomar analgésico, não usar antiinflamatório, e, se não há melhorar, voltar ao médico. Agora havia pus, então prescrevi antibiótico. Só uma das que eu atendi no sábado voltou no domingo. O resto era de origem viral. Agora imagina se eu saísse fazendo benzetacil em todas as dores de garganta que aparecem!
Dois rapazes que vinham ver o bloco de carnaval caíram da moto antes mesmo de chegar na cidade.Puro azar, nem tinham bebido. Vinham só ver a festa. Escoriações, uma sutura no joelho e a vida segue.
Um bêbado levou uma mordida do cachorro da irmã. Eu adorei. O cachorro deve ter se vingado da chatice dele. Notifiquei o caso e avisei que deveria procurar o posto no dia seguinte pra tomar uma dose de anti-rábica porque a mordida foi na mão. E que não matasse o cachorro pelo amor de Deus, senão teria que tomar um monte de injeções. Não sei se entendeu. Por via das dúvidas, a vigilância sanitária vai procurá-lo.
Um senhor com Doença de Chagas, que encaminhei para a capital há umas duas semanas, retornou, com insuficiência cardíaca descompensada. É um velho conhecido e fiz o que pude pra melhorar seu conforto. Ele toma os remédios corretamente, mas já tem um marcapasso e sabe que vai morrar assim. Não fiz diurético porque sua pressão já estava baixa e continuamos esperando o laudo sobre a contaminação da furosemida que havia no hospital. Como o fornecedor só tem esse lote, estamos sem furosemida injetável na cidade.
Uma mocinha com tontura e vômitos depois de andar em diversos brinquedos do parquinho: labirintite. Permaneceu umas 18 hora em observação até estar reidratada e poder voltar pra casa.
Eu, com cólica menstrual, fui suturar o dedo de uma mulher, cortado numa lata de cerveja. Enquanto isso, me informaram que um rapaz com o braço quebrado esperava. Uma sutura grande e complicada. Quando terminei, pedi um comprimido pra dor e saí da sala pra tomar.
Estava um pandemônio lá fora, um rapaz com varicela (catapora) queria entrar na sala de sutura, o irmão do rapaz com o braço machucado queria ser atendido primeiro. Eu tive que gritar pra ser ouvida. Primeiro eu ia tomar meu remédio, senão não tinha condições de atender ninguém.
O ombro do rapaz havia sido luxado. Fiz um antiinflamatório pra aliviar a dor e pedi que esperasse um pouco, pra dar tempo do músculo relaxar. Atendi o rapaz com varicela, orientei sobre contágio e dispensei-o. Com uma manobra simples, recoloquei o braço do outro no lugar, que ficou impressionado com o súbito desaparecimento da dor.
Finalmente, a festa terminou. Dormi de meia-noite às seis, quando fui acordada pra ver uma senhora com uma lesão no pé, que há meses a incomoda. Desde quando psoríase é emergência?

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