segunda-feira, janeiro 16, 2006

Vida de médico

Sem melhora da RN (recém-nascida) de sábado. Um parto pélvico, na estrada, dentro de uma ambulância, às seis da noite. A mãe já chegou com a criança do lado de fora, com a cabeça do RN presa, dentro de um carro. Uma luta pra eu retirá-la de lá e colocá-la na ambulância, eu (com uma tendinite no punho) e o motorista (com uma hérnia de disco). Mais de dez minutos pra desprender o pólo cefálico, Apgar 0 (nota dada quando a criança nasce pra avaliar condições de vitalidade, Apagar 0 é nota 0), não sei quando e se o coração começou a bater porque o balanço do carro não me permitia avaliar.

Massagem cardíaca e respiração boca-a-boca porque não tinha um ambu. Aquecimento com campos não estéreis, aspiração com uma sonda uretral e uma seringa de 20 ml, O2 pela mesma sonda, uma clavícula quebrada. Depois de uns 15 minutos chegamos na maternidade de referência. Desci da ambulância certa que carregava um cadaverzinho nas mãos, mas por via das dúvidas, só cortei o cordão quando chegamos. Eu sabia que era a via de acesso mais fácil pra infundir soro e drogas.

Entrei sala de parto adentro “com licença, com licença” e pedindo um monte de coisas, inclusive uma pediatra. Não acreditei nas minhas mãos, que tremiam, quando senti o batimento daquele coração. Pedi pra uma auxiliar confirmar. Estava batendo. Fiquei lá, ajudando a ventilar com o ambu, pedindo desculpa por não ter feito mais pois não tinha material pra isso, e a pediatra me agradecendo, dizendo que eu tinha feito o possível. Nem sei se outro médico teria feito boca-a-boca, naquela mistura de secreção de vias respiratórias, sangue e as fezes da mãe na cabeça da criança.

Eis que chega um homem, médico ou enfermeiro, todo cheio de pose, dizendo que eu devia ter ficado com a paciente lá naquela cidadezinha com uma emergência que é um postinho melhorado. Disse que dava pra ter retirado a criança com a manobra tal, que era muito fácil, e só então trazer a criança. “Doutor, eu não entendo tanto de obstetrícia, eu entendo mesmo é de neonatologia. O último parto pélvico que vi, a cabeça da criança ficou encravada, foi preciso cortar o corpo, quebrar o crânio e retirar os pedaços. E isso era um prematuro (bem menor), numa maternidade cheia de residentes e staffs. Eu não quero ver isso nunca mais”. O que mais eu ia dizer?

A RN não respirou, foi intubada e está num respirador desde antes de ontem. Continua grave. Se sobreviver, vai ter algum dano neurológico porque faltou oxigênio enquanto estava presa e o cordão umbilical não passava sangue porque estava comprimido pela cabeça. Será que a mãe vai entender ou vai passar o resto da vida desta criança dizendo que era melhor ter morrido logo?

Em tempo: após os testes, hoje foi confirmado que a RN não tem sífilis e é HIV negativo.

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