terça-feira, janeiro 31, 2006

Plantão de sábado

Festa de novo na cidadezinha de 6 mil habitantes. A maior festa do ano, com direito a corrida a pé, festa do padroeiro e bloco de Carnaval, parque de diversões, etc, etc. Fui preparada espiritualmente pra enfrentar 48 horas de plantão, com direito a bêbado, acidente, muitas suturas. Eu não sei por que, mas eu não tenho paciência com bêbado. É direito do “serumano” (como diz a Fal) tomar um porre, mas impor sua presença nesse estado deveria ser proibido por lei. Principalmente porque só que faz isso é bêbado chato.
Logo quando fui pagar a passagem do ônibus, um rapaz disse pro cobrador “Tem festa hoje em ..., né?”. E eu: “Infelizmente pra mim, sim”. Se você é a única médica na cidade, como pode ser felizmente, me diga?

O dono do parque de diversões trouxe o filhinho com uma bronquite, tratada a cada dia por um médico diferente há três semanas, uma vez que ele vive viajando. Pra variar, os habituais pacientes com dor de garganta, gastrite, criança vomitando. Finalmente conheci o diretor do hospital. A gente só se fala por telefone porque ele trabalha durante a semana. Ele me avisou que conseguiu um médico pro sábado (Aleluia!) e acabaram-se as 48 horas seguidas.
Na conversa, o diretor me garantiu que minha eterna paciente que vem diariamente à emergência tomar Diazepam finalmente vai ser consultada por um psiquiatra essa semana. A paciente tem depressão (o diretor segredou-me que ela apanha do marido, que parece tão bonzinho) mas é psicologicamente viciada na medicação. Em geral, a gente faz água destilada e ela melhora. Eu não sabia da agressão doméstica.
Um homem esfaqueou a própria mão. Embora muito pequeno, o corte era profundo, atravessando a palma da mão. Um pontinho resolveu o problema.
Uma senhora com diabetes deixou uma panela de barro cair no pé e esperou oito dias pra procurar um médico. Uma superinfecção e uma glicemia de quase 400. Expliquei que não iria confiar mais nela, medicando-a e mandando pra casa. Sabe-se lá quando ela iria de novo ao médico? Sem falar que mora sozinha. Internei-a. Velhinhos são os mais rebeldes pacientes que existem, excetuando-se os próprios médicos.
Um homem com crise de coluna tomou um comprimido de diclofenaco em casa e não melhorou. Veio tomar uma injeção porque não agüentava mais de dor. Expliquei que tinha o mesmo diclofenaco injetável, numa concentração maior e geralmente resolve. Antes, quis examiná-lo, poderia ser uma crise renal. Qual não foi nossa surpresa, as costas dele estavam vermelhas, o abdome também: alergia ao comprimido. Imagina se eu tivesse feito a injeção sem examiná-lo! Proibi Voltaren, Cataflan, etc, fiz outro antiinflamatório e encaminhei-o ao ortopedista.
Sinceramente, eu esperava que a tal corrida trouxesse um monte de gente com o pé torcido, mas não houve nenhum. Aliás, ninguém caiu e se machucou na corrida. O que movimentou a noite foi a festa.
Um rapaz, com dor de dente há dez dias(!) afinal procurou o serviço. Parecia aqueles desenhos animados: um lado do rosto superinchado.Era um abscesso dentário imenso, não dava pra resolver ali, nem dava pra esperar pra segunda-feira. Fiz um antiinflamatório pra aliviar a dor e encaminhei-o pro hospital da cidade vizinha, que tem um bucomaxilofacial de plantão. Foi a única transferência da noite.
Não se engane, o plantão foi um porre só. Vi o dia amanhecer, literalmente. Vi quando a roda-gigante do parque parou de funcionar. As brigas da festa sobraram todas pra mim. Eu havia pedido mais um auxiliar de enfermagem, o que deu uma folga pra equipe e eles puderam tirar um cochilo, mas eu era a única médica, então já viu. Interessante é que as pessoas não queriam que eu suturasse os cortes. Um rapaz levou uma garrafada na testa, ficou cheio de pequenos cortes e muito mal-educadamente, quis me dizer o que fazer. Como nenhuma das lesões dava pra suturar, deixei que ele se entendesse com a auxiliar de enfermagem.
Um rapaz foi agredido por outros sete (segundo ele). Claro, estava embriagado. Tinha um galo enorme na cabeça, o nariz sangrando e o rosto inchado, e muita manha. Aparentemente não era nada grave, um traumatismo crânio-encefálico (TCE) leve , mas toda pancada na cabeça exige observação e expliquei isso pra ele. Coloquei-o num soro glicosado devido à embriaguez e anotei o exame neurológico inicial. Uma hora depois fui examiná-lo e ele havia assinado um termo de responsabilidade (como alguém desacompanhado e embriagado pode ser responsável por si mesmo é coisa que não entendo).
Enquanto eu atendia esse rapaz, informaram que estava chegando uma facada. Era uma facada no nariz, depois de uma tentativa de assalto. Dava pra ver o osso do nariz, lascado. Pra variar, o homem não queria que suturasse. Fiz com que ele assinasse, com testemunha, o risco de infecção, incluindo uma meningite (devido à vascularização da área).
Dois rapazes, já voltando da festa, sóbrios, tiveram a má sorte de estourar um pneu da moto. Muitas escoriações e uma sutura, se não me engano. A essa altura eu estava dormindo em pé.
Não lembro qual o último paciente do plantão, sinceramente.

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