domingo, julho 25, 2010

Ser escritora

Eu escrevi essa no primeiro ano da faculdade, pra uma criança muito especial. Hoje, é uma moça, escritora também. Há alguns anos, ela me retribuiu, oferecendo um conto dela, como presente de Natal. Não me lembro de ter outra história para crianças.

"A BRUXINHA VESGA"

Adélia era a caçula de uma família de bruxas. Seu pai era membro da Sociedade dos Bruxos , sua mãe era considerada uma grande bruxa e suas irmãs haviam-se formado com louvor como bruxas. Mas, Adélia, pobrezinha! Adélia era um desastre. Não conseguia fazer nada direito. Se era pra colocar uma cobra na receita, ela punha uma rosa, um espelho, no lugar de um morcego. E chorava desconsolada, porque a professora colocava-a de castigo diante das outras bruxinhas, dizendo:
- Se vocês não forem más o suficiente, serão como Adélia, que usa flores nas suas poções, sinal de bom coração.

Na verdade, Adélia não gostava muito de ser bruxa. Acontece que era tradição de família, todas as irmãs dela eram bruxas, e cada vez que ela se queixava, lá vinha aquele blá, blá, blá, sem fim . O pai apontava para o retrato de sua mãe (avó de Adélia) e dizia:
- Ela foi a maior bruxa de todos os tempos.
O olhar da avó no retrato já era tão terrível que fazia Adélia imaginar os mais terríveis castigos. E pra finalizar:
- Todo mundo nessa família é bruxo. Por que você tem que ser diferente?

É claro que isso era motivo de muita tristeza para o pai e a mãe de Adélia.
- Não entendo como isso pôde acontecer - lamentava o pai - Uma bruxinha tão feia.
- Pois se até um olho torto ela possui - acrescentava a mãe.
Na escola, porém, a professora havia perdido a paciência. Adélia havia trocado mais um ingrediente da lição e dissera as palavras mágicas erradas. Como resultado, o caldeirão explodiu. Passado o susto, a professora colocou Adélia de castigo e disse:
- Mesmo as bruxas precisam ter disciplina. E Adélia não tem. Dessa vez ela foi longe demais, poderia ter nos matado. Por isso, ela está expulsa da Escola dos Bruxos.
E mandou Adélia embora.

Adélia não teve coragem de voltar pra casa e, por isso, saiu andando pela floresta. Andou, andou. Até que chegou num lugar onde nunca tinha estado antes. Resolveu parar um pouquinho para descansar, e adormeceu.
Acordou com alguém chamando-a e viu um senhor vestido de branco.
- Quem é você?- perguntou Adélia.
- Eu sou o Dr. Marcos.
Aquilo assustou muito Adélia, pois aquele era um homem, e as bruxas sempre falavam mal dos homens. Lembrou-se que havia uma bruxaria para se defender dos homens. Como era mesmo? Invocar os maus espíritos e dizer uma palavra mágica. Ou seria o contrário?
Nesse momento, ela ficou ainda mais triste, porque viu que a professora tinha razão, ela não sabia nem se defender de um homem. E começou a chorar.
- Porque você está chorando?- perguntou o médico.
- Porque eu sou uma bruxa, mas não sei fazer nada direito. Sou tão desastrada que fui expulsa da Escola dos Bruxos.
- E o que você faz errado?
- Tudo. Eu troco todos ingredientes das poções, até as palavras mágicas eu digo errado.
- Deixe-me ver uma coisa - disse o Dr. Marcos, sentando-se no chão, pois era muito alto, e Adélia, muito pequenina - Quantos dedos têm aqui?- e estendeu a mão.
- Acho que são três, mas não tenho certeza. Eles são encantados.
- Por que são encantados?- perguntou o doutor.
- Porque se juntam e se separam. Tem hora que são três, tem hora que são quatro.
- Qual o seu nome, bruxinha?
- Adélia.
- Adélia, acho que posso ajudar você.


O Dr. Marcos levou Adélia a um oculista. Lá, ela descobriu que seu "olho torto", que era o orgulho da mãe, era um defeitinho, chamado estrabismo. Por isso, ela não conseguia ler direito e aprendia nada. Era preciso fazer uns exercícios especiais para o olho preguiçoso. Isso deixou Adélia muito feliz, mas...
- Como contar pra mamãe que tem um homem me ajudando?

Adélia pensou, pensou e resolveu: melhor não contar nada. Quando ela voltou para casa teve que enfrentar um problemão, que ela já havia até esquecido: a expulsão da escola. Ela olhou pro pai e estremeceu. A cara dele parecia uma nuvem de chuva, daquelas bem pretas, de tempestade, com muito raio e trovão.
Inventou que estava muito arrependida (isso era mentira, porque a culpa não era dela) e prometeu que ia aprender todos os feitiços para ser uma bruxa muito má (isso não era tão verdade). E assim, a professora permitiu que ela voltasse.
A mãe bem que desconfiou daquelas saídas constantes, mas Adélia dizia que tinha que praticar as lições. E ia para mais uma sessão de exercícios especiais.
- Parece que agora Adélia encontrou o mau caminho. - dizia a mãe, toda satisfeita, para o pai.

Adélia começou a ler melhor e a entender as lições, e a não gostar do que aprendia, exceto pelo mistério que representavam aquelas misturas. Como é que se misturava dois líquidos sem cor e ficava tudo azul? E começou a pensar.
"Eu pensava que não gostava de ser bruxa porque não aprendia. Agora que estou aprendendo, estou vendo que não gosto muito disso".
E resolveu conversar com alguém. E estava pensando, quando chegou ao consultório do oculista.
- Bem, Adélia - disse o médico - agora acabou. Você não precisa vir mais aqui.
- O senhor me ajudou muito - agradeceu Adélia - Além de consertar olho, o que mais o senhor faz?
- Os médicos salvam vidas, ou ajudam a torná-la melhor, como no seu caso.
- Como o Dr. Marcos fez.
- Exatamente. O Dr. Marcos gosta de ajudar as pessoas. Sempre quis ser médico.
- Deve ser bom fazer o que gosta. - disse Adélia, pensando nas aulas de bruxaria, que só ensinavam a fazer o mal.
- Mas não foi tão fácil assim. O pai dele era advogado e queria que ele também fosse.
- Meus pais também são assim, - disse Adélia, se animando- querem que eu siga a profissão da família.
- E você quer?
- Não gosto muito.
- Então pense direitinho e converse com eles. Vão ter que entender.
Adélia voltou para casa pensando. Pensar era o seu novo passatempo. E pensando, descobriu uma coisa: ela não queria ser bruxa. Queria descobrir o mistério das poções. Era isso que ela queria aprender.

Adélia chegou em casa na hora do jantar. Comeu em silêncio e esperou que todo mundo terminasse. Tomou coragem, enfrentou o olhar da avó, lá no retrato, e disse:
- Não quero ser bruxa.
Foi como uma bomba. O pai ameaçou-a com todos os feitiços, invocou o nome da avó. A mãe ficou vermelha de tanta raiva. As irmãs não paravam de falar. Calmamente, ela começou a explicar, e eles foram se calando para ouvir.
- Eu nunca quis ser bruxa. Mas gosto de fazer poções.
E o barulho recomeçou.

Não houve praga, nem feitiço, que mudasse Adélia. Ela ficou firme, apesar de todos os protestos. Hoje, ela é farmacêutica, continua fazendo poções, só que agora elas se chamam medicamentos.


(Por favor, não passe adiante sem autorização, nem se aproprie, se dizendo autor dessa história. Ela está registrada nos arquivos da Bilbioteca Nacional, e você não quer ser processado, ou quer?)

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