Mudança
Se alguém perguntasse a ela como havia passado aqueles dias, ela não saberia responder. Sabia apenas que seu corpo e mente vagavam de um lado pro outro, se esforçando por fazer alguma coisa, qualquer coisa. Provavelmente, ela se apegava à rotina já conhecida, ao que já dera certo das outras vezes. Se manter ocupada ajudava, era o que havia aprendido em tempos passados. Então, ela se mantinha ocupada.
Não executava as tarefas com método, como lhe era habitual. Começava e parava, iniciava outra coisa, seguia pra uma terceira, voltava pra primeira, mas de algum modo, o trabalho prosseguia. Pra onde quer que se olhasse, havia ordem e caos. Caixas de objetos perfeitamente embalados e etiquetados, uma porção de coisas soltas pelos cantos, sem ordem aparente. Inúmeros objetos fundamentais já embrulhados e os supérfluos ainda nas prateleiras, a maioria já limpa da poeira, à espera da boa vontade dela pra embalá-los.
Uma pilha assustadora de roupa pra passar. Ainda mais assustadora se considerando que ela havia passado roupa por quase toda a vida, bem e rapidamente. Mais impressionante era a quantidade de lixo que se acumulava pra ser colocado fora, e era apenas o lixo dos dois últimos dias. Desde que ela havia iniciado aquilo, tinha a impressão que metade do que havia dentro dos moveis havia ido pro lixo, e ainda havia duas caixas enormes de objetos pra doação.
Ela adiava a confrontação com a papelada e os livros. Era o teste final do balanço que estava fazendo de sua própria existência. Sabia que, ao começar, ia se deparar com o que já sabia: não havia nada ali que dissesse o que ela havia feito por toda a vida. Ela acumulava informações que quase nunca consultava sobre uma profissão que ainda não sabia como ou por que havia escolhido. Lia e relia histórias sobre mundos imaginários, histórias baseadas em locais ou pessoas reais, novelizações de filmes e séries de TV, romances médicos, aventuras em terras longínquas e contos sobre mulheres perdidas e insatisfeitas com a própria existência ou com suas ações. Não lia biografias. Tinha alguns livros sobre jornalismo, mas não queria os fatos reais da vida. Preferia a reinterpretação dos fatos, a idealização das situações, a sátira do real, a vida imaginária.
Tudo lhe parecia melhor que a vida real. Talvez por isso, ela estivesse se desfazendo de tanta coisa, mas continuasse se apegando às revistas em quadrinhos, aos romances, aos filmes, às séries de TV, às imagens das flores, das telas e das fotografias que mantinha em seu HD. Aliás, seria mais difícil de excluir algo de seu HD do que de sua casa. Porque o virtual havia se tornado, enfim, mais real do que a própria vida ‘real’.
'After the thrill is gone', by Jack Vettriano.
3 comentários:
Posso te falar uma coisa com sinceridade: acho que você chegou num momento meio Sara Sidle. Será que não é hora de "deixar Vegas"?
" Porque o virtual havia se tornado, enfim, mais real do que a própria vida ‘real’."
Adorei isso. Já mandou pro meu e-mail? :D
Estou deixando, estou deixando. Mas, diferente de Sara, estou me despedindo pessoalmente.
Postar um comentário